quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Réquiem para CISE


Nossa Cesária “encantou-se”, como diria Guimarães Rosa.
E digo nossa, porque sua voz morna, de timbre ímpar e ao mesmo tempo de potência uterina, é hoje o maior bilhete de identidade crioulo e, todavia, é emoção do mundo.
Cabo Verde sabe compartilhar.
Encantada, a mulher do povo, lavadeira de pés de Portinari plantados no chão das ilhas, soube encantar o chão dos palcos com a simplicidade da arte tradicional de um pequeno país que, por sua voz e sua arte, fez-se e se faz grande.
No mar azul, singrou e atravessou fronteiras, espalhou crecheu, uniu povos.
Cabo Verde, o Brasilin, assim como o Brasil (um vasto Cabo Verde) e todos os recantos planetários que amaram a sua obra se postam reverentes, em silêncio. Esperando, mais uma vez, que sua voz ecoe, como um abraço largo, como aqueles que dela recebi no antológico Quintal da Música e em outros sítios, a beijar as suas mãos de musa e de mulher, de carícia e de força.
A musa dos pés descalços se transformou em mito, não deixando de marcar, contudo, com força vulcânica, a sua visceral corporalidade em nosso mundo.
Adentrou, sem precisar pedir licença a São Pedro (qual a Irene de Manuel Bandeira), num céu de música onde, certamente, um coro angelical de vozes infantis a esperava à porta de nuvem.
No dia em que eu precise pedir licença para passar ao andar de cima, caso tenha essa permissão, espero encontrar o anjo Cesária, feminino e forte, a abrir-me seu útero de batucadeira, para me receber mais uma vez no seu íntimo, com um abraço ... cantando.
A perda é muito grande e dolorosa. O que nos consola é que uma voz como essa e um trabalho como o de Cise jamais serão esquecidos. O cosmos é sábio e, para tanto, inventou Mnemosyne. Um gênio nato, mesmo em nossos tempos de esquecimentos vários, sempre permanece. A memória, altar que eterniza os feitos e momentos de Beleza, felizmente a protege do efeito das águas do rio Lete (rio do esquecimento).
Como, por urgências de trabalho no Brasil, não poderei estar presente às homenagens oficiais prestadas a Cise, juntamente com os professores e alunos de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (que represento junto ao Estado de Cabo Verde), irmano-me ao povo cabo-verdiano na sua Hora di Bai, num coro que, cantando para ela, retribui tudo o que nos concedeu de alegria, de paixão e de beleza.
A Universidade de São Paulo, Brasil, especialmente representada pela área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e pela Coordenação dos convênios que mantém com as Universidades cabo-verdianas (UNICV, UNIPIAGET e UNISANTIAGO), solidariza-se com a dor do país e pede permissão para entoar este réquiem, pleno do silêncio e da reverência que este exemplo de artista e de mulher cabo-verdiana merece.

  
Simone Caputo Gomes - Cabo-verdianista de longa data
Profa. Doutora da Universidade de São Paulo, Brasil
Coordenadora da Área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da USP
Coordenadora dos convênios da USP, nas áreas de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, com a UNICV, a UNIPIAGET e a UNISANTIAGO


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