quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O SAMBA, A COZINHA E A RESISTÊNCIA.



Na sua casa a cozinha é no fundo? Talvez não, mas ainda hoje a maioria das construções residenciais possui a cozinha no fundo, e de forma quase isolada. Pode ser que você não saiba, mas é culpa dos negros, ou melhor, dos brancos. É que estas construções que acomodam a cozinha de uma forma que quem está na sala não têm contato nem visual com quem está na cozinha, são uma herança arquitetônica da época da escravidão.
Mas o fato é que hoje, 02 de Dezembro, é comemorado o Dia Nacional do Samba, e a história do samba, assim como a da cozinha, retrata a resistência de um povo que em muitos lugares ainda entra pela porta dos fundos, quando entra. O samba veio dos batuques, que vieram dos terreiros, que originaram os ritmos e as melodias dos chamados sambas de raiz. Era a forma de o negro falar, de se expressar, demonstrar seus sentimentos e o que lhe ia à alma.
Logo após a patifaria que foi chamada de abolição da escravatura, em um resgate histórico, encontramos letras que prestigiavam a Princesa Isabel, demonstrando claramente a esperança de alguns em um futuro melhor: “Salve a Princesa Isabel, ai que beleza. Nego comia no cocho, agora come na mesa. Já acabou a escravidão, ai que beleza...”
Mas o tempo mostrou que era mesmo uma ilusão, e que a abolição nem de longe deu igualdade aos negros, e logo as letras de samba expressavam isto: “Trabalhar, eu não, eu não. Trabalho e não tenho nada, só tenho calo na mão. O meu patrão ficou rico, e nós ‘fiquemo’ na mão...”
Mas na sociedade da época, assim como na de hoje, quem tem o poder financeiro tem também o poder cultural, e os brancos logo resolveram abraçar o samba. Até aí tudo bem, mas foi exatamente neste momento que começou o tal do “embranquecimento” do samba, numa tentativa descolorada de fazer o samba deixar de ser a expressão dos sentimentos dos negros.
Era a época do rádio e o samba desta forma, cada vez mais difundido, porém, não como um grito de liberdade e revolta contra a opressão, e sim com letras que tentavam oprimir ainda mais os negros, seus inventores. Ocultando o discurso do negro como resistência à sua condição de explorado, o discurso branco ocupava um novo espaço, um espaço criado e conquistado pelo negro, reafirmando o seu discurso de exclusão.
“Nego língua de matraca, boca de corneta. Nada que é seu se aproveita. Chegando o dia de nego morrer, e se for pro céu, São Pedro faz descer. No purgatório ninguém lhe abre a porta, e no inferno ninguém lhe quer ver...”
Há de se compreender cada vez mais o mal que alguns brancos fizeram aos negros, e também a consciência de que muitos negros se venderam aos brancos e também cometeram atrocidades contra seu próprio povo. Há de se compreender e valorizar cada sorriso branco em pele escura que se vê hoje, e saber que se o samba tem raiz, esta raiz está na senzala e nas cozinhas que ainda hoje ficam ao fundo das casas.
Era lá que a velha negra cozinhava sua esperança e também a de seu povo, temperando esta muitas vezes com lágrimas de sofrimento, mas também com a alegria e a energia de um povo que passou e ainda passa por muitos complicadores, mas resistiu e continua resistindo.
Sambemos hoje na cozinha ou na sala, seja lá qual for a cor de nossa pele, mas quando vir um negro ou uma negra sambando, pare e dê passagem, ali vai toda uma cultura e uma resistência histórica.
Grande abraço e Axé.
Ricardo Barreira
Babalorixá da Aldeia Tupiniquim
ARTIGO PUBLICADO NA COLUNA DE RICARDO BARREIRA NO JORNAL BOM DIA EM 02/12/2011.

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